23 fevereiro 2012

O chamamento da Terra

O apelo do campo, o cheiro do húmus, a proximidade à vida vegetal, enfim, esse chamamento da terra, é algo que me provoca um arrepio na espinha. Paisagem bucólica para mim é a Avenida Paulista em São Paulo ou um qualquer bairro em Almada. E não estou a ser irónico. A simples imagem de vales e prados, ou a promessa de ar puro, me produz urticária. Já uma boa dose de CO2, de preferência logo pela manhã, é o que me faz sair da cama voando.

Ora o actualíssimo apelo para regressarmos à terra, baseado na ideia de que o futuro passa obrigatoriamente pela agricultura, pecuária e afins, deixa-me desorientado. Eu, que não tenho terra nem origens recentes no campo, preciso de alternativas para poder obedecer ao novo paradigma. Pelo menos para poder dizer que sim, que na terra é que se está bem. Embora continue a achar que um apartamento em Marte era capaz de me dar mais jeito…

Cedendo, aterrei. A palavra elegância é a que melhor define o Terra. Habita uma bonita casa antiga, de enorme pé direito e com uma decoração requintada mas contemporaneamente acolhedora, onde predominam os tons castanhos e pretos, destacando-se as varandas repletas de plantas onde se pode fumar. No rés-do-chão existe um Sushi Bar. O atendimento é competente mas um bocadinho gelado e quase intimida.

O couvert inclui pão de várias espécies, grissinos, azeite com ervas aromáticas e uma pasta de abacate, limão, alho e manjericão. A garrafeira é excelente mas o menu de vinhos não é para info-excluídos já que a selecção tem de ser feita a partir de um ipad.

Das entradas selecciono as vieiras grelhadas em cama de espinafres com sésamo e beurre blanc (€ 8) que se apresentam intensas deixando resplandecer o seu sabor natural. Provo ainda um creme de lagosta e funcho com amêndoa e manjericão (€ 6,5), muito suave, ligeiramente picante e com um generoso pedaço de lagosta. Dos pratos principais, e entre as muitas e prometedoras opções, escolho o pernil de borrego lacado com risotto de açafrão à milanesa (€ 18,5). Admito que esperava algo mais subtil e que não me fizesse sentir Obelix. O risotto chegou um pouco alagado e demasiado cozido. Acontece. Mas a carne, voluptuosa, despia-se do osso como manteiga. Para sobremesa apetece pedir um bocadinho de tudo mas o peso do pernil não me permite e opto pelo delicioso cartoccio de maçã (massa folhada muito fina e estaladiça) e mascarpone com molho marsala (€ 6).

Para este regresso à terra, contem comigo.

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Terra * Rua do Padrão, 103 – Porto * Contacto: 226 177 339 * 12h30 – 15h30 | 19h30 – 01h30 (não fecha) * Preço médio: 40 € * Nota: 87%

Quixote não sou

Lutar contra moinhos de vento é desígnio do qual cada vez mais me afasto. Transformar derrotas em vitórias é para outros campeonatos. Até porque hoje já quase só existem moinhos eólicos e aquilo aleija. Já lutar contra excelentes petiscos, é desafio a que não me furto. E garanto vitória.

O Solar Moinho de Vento, embora em funções há dezenas de anos, situa-se no recentemente designado coração da nova zona boémia portuense.

Composto por duas salas de jantar, uma no piso térreo, onde é possível ver a cozinha em pleno funcionamento, e outra, mais ampla, no primeiro andar, a decoração está entre o tradicional e o rústico. O couvert é composto por um excelente pão, azeitonas e um prato de bom azeite. A lista de vinhos, não sendo vasta, é suficiente. Da oferta de tapas selecciono umas fabulosas pataniscas de bacalhau (€ 2,80) fritas na hora. Para prato principal, com tanta coisinha boa, fico indeciso entre uma feijoada à lavrador (€ 8,50), um fígado de vitela de cebolada (€ 7,50) ou o bacalhau dourado à antiga (€ 8). Opto pelo último e não me arrependo nada. Trata-se daquilo a que normalmente se chama Bacalhau à Brás só que com dose generosa do mesmo, ovo apenas para ligar e deliciosas batatas fritas caseiras. Termino provando uma surpreendente mousse de limão (€ 2,80), francamente muito boa.

Se para D. Quixote não tenho vocação, para Sancho Pança estou cada vez mais preparado.

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Solar Moinho de Vento * Rua de Sá Noronha, 81 – Porto * Contacto: 222 051 158 * 12h – 15h30 | 19h – 22h (encerra Domingo ao jantar) * Preço médio: 25 € * Nota: 77%

16 fevereiro 2012

Aqui jazz... e mais nada

Associar restaurantes a outras actividades ou cidades parece ser uma orientação hodierna a que os empresários da restauração não resistem. Não sei qual foi o estudo de mercado em que se basearam (talvez o gasto mas de novo apelativo slogan “vá para fora cá dentro”), mas a ideia de Nova Iorque no Porto parece quase uma obsessão. Tendencialmente fatal.

O Tribeca mora num prédio de cinco andares. Para além de um piso dedicado à música ao vivo, tem também um espaço lounge onde se pode assistir a concertos via vídeo. A decoração é de altíssimo bom gosto, a música, easy listening, idem (jazz, soul e blues). Toda esta sofisticação aguça o palato e eleva as expectativas.

De couvert um prato de queijo, patê e umas tostas. Mau, muito mau. O prato vinha tão directamente do frigorífico que se notavam queimaduras de alguns graus em vários dos elementos. Pão, ainda que normalzinho, não há. A lista de vinhos é paupérrima, o que num bar é no mínimo estranho. Das entradas, sem grande entusiasmo dada a escassez de oferta, selecciono uma salada de pêra rocha com queijo de cabra (€ 6) e uma alheira de caça com grelos salteados (€ 5). A pêra não sabe a nada e o queijo apela a uma nova revolução industrial. A alheira é picante e é quase tudo que se pode dizer. Dos pratos principais, escolho o Tribeca NY Steak (€ 17,50) e uma açorda de marisco na sêmea (€ 18,50). Opções arriscadas mas que, de acordo com o funcionário, são “óptimas escolhas”. A carne é boa mas vem muito mal acompanhada. A salada é horrenda e despropositada (deslavada cenoura ralada, alface queimada, couve roxa murcha e cebola, tudo sem qualquer tempero – nem um coelho a morrer de fome a comia). A batata na prata, característica típica deste prato, dá pena. O queijo derretido vem duro e seco, tipo pastilha elástica. Tratar assim o prato que devia ser ícone da casa assegura o rápido fracasso. A açorda na sêmea, caminho pelo qual não se deviam ter metido, é dominada por um excessivo sabor a tomate enlatado e por marisco desenxabido. Já sem qualquer esperança provo o NY cheesecake (€ 5,50). Como docinho não é mau e até levantou a moral, mas nada tem a ver com um Cheessecake, muito menos com um cheesecake nova-iorquino.

Resta a inevitável pergunta? Porque é que um clube de Jazz, francamente bom e que tanta falta fazia à cidade, não pode ser “apenas” isso? Por outras e mais populares palavras: quem te manda a ti, sapateiro, tocar rabecão?

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Tribeca * Rua 31 de Janeiro, 147 – Porto * Contacto: 222 014 406 * 09h30 – 19h | 20h – 23h (encerra ao Domingo) * Preço médio: 35 € * Nota: 45%

A máquina do tempo

Sou um piegas assumido e nem preciso que mo lembrem. Faço parte dos que sentem que nasceram no tempo e espaço errados. Por isso, fujo com frequência para locais que me transportam para onde deveria estar mas, por infortúnio do destino, não estou. Nem que seja apenas para jantar.

O Palmeira é um desses refúgios. A amabilidade com que sou recebido, a disposição das mesas, o fardamento dos empregados (que parecem saídos de um filme mudo) e a silenciosa presença de clientes que, pela idade, aparentam ter convivido com o Repórter X, oferecem todo um ambiente propício à satisfação de nostalgias. Não fossem as duas Tv’s, que nos fazem regressar a um presente assaz deprimente, e julgaríamos estar a viver em plena década de 20 do século passado.

O menu contém óptimas propostas da cozinha tradicional portuguesa. O couvert inclui uns apetitosos croquetes e rissóis acabados de fritar. A oferta de vinhos é boa mas opto por um jarrinho do da casa. De entrada não resisto a umas papas de sarrabulho (€ 2,30), muito próximas da perfeição (que até agora só havia encontrado em Ponte de Lima). Para prato principal duas provas: marmotas fritas com um arroz de tomate acabado de fazer (€ 8,50) e uns tenros e apetitosos filetes de polvo com esparregado (€ 11,50). De sobremesa a bomba calórica que se impõe para enfrentar a vaga de frio: omeleta ao rum flamejada (€ 7,50).

Um dos últimos grandes clássicos do Porto. A preservar.

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Palmeira * Rua do Ateneu Comercial do Porto, 36 – Porto * Contacto: 222 055 601 * 08h – 22h (encerra ao Domingo) * Preço médio: 25 € * Nota: 77%

09 fevereiro 2012

Regressar ao Casarão

Há alguns anos sai desta casa como quem, na minha geração, saia de casa dos pais (sim, hoje, nem com ameaças de bomba, alguém no seu perfeito juízo sai da “zona de conforto” – mais facilmente saem os pais): zangado, implicando com aquilo que não sabia apreciar, a achar que tinha o rei na barriga, iludido com vãs esperanças em novidades velhas, rogando pragas ao conservadorismo, enfim, como um pateta alegre. Felizmente, e ainda que com alguma dificuldade, vivi anos suficientes para poder perceber alguma coisa da vida. Pouco, eu sei, mas o suficiente para sublimar um erro do passado e ser perdoado e amado como se nunca daqui tivesse saído.

O Casarão é uma casa antiga mas muito bem conservada, com uma decoração clássica, um amplo salão e várias salas privadas, chão em soalho e janelas com portadas em madeira. As paredes brancas são decoradas com quadros pintados a óleo. A recepção é cavalheiresca e amistosa. E sinto no olhar de quem me recebe o pensamento: “o bom filho à casa torna”. Rapidamente se percebe que é um restaurante frequentado por grupos de amigos, daqueles que se reúnem há anos periodicamente. Tradições de gente caduca já que os verdadeiros amigos, como toda a gente sabe, estão no Facebook.

Na mesa elegantemente bem-posta esperam-me crocantes pataniscas de bacalhau quentinhas, croquetes, rissóis de marisco e uma bola de carne dos deuses. O restaurante possui uma excelente garrafeira, também de destilados (particularmente uísques). Na carta há de quase tudo. Muito marisco (destaque para uma feijoada de lagosta com camarão), uma infindável variedade de peixe fresco e pratos de carne clássicos (como o cabrito assado no forno ou o fondue bourguignone). Opto pelo peixe provando uns magníficos lombinhos de pescada com molho de marisco (dose a € 18 mas que dá para duas pessoas) e um robalo grelhado que pedi (podem-se ajustar os acompanhamentos sem espavento do chefe) que viesse com um delicioso esparregado. O peixe não só é fresco como tem aquele sabor a mar que me traz à memória noites de verão em locais longínquos, onde se podia pescar e comer o resultado da faina na praia. Ou os robalos que pescava em plena foz do Douro com o meu saudoso avô. Nas sobremesas as opções também são muitas. Escolho a simples, mas muito satisfatória, tarte de laranja (€ 3,50).

Perdoei e fui correspondido. É isto o amor.

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Casarão do Castelo * Rua Santa Catarina, 74 – Leça da Palmeira (Matosinhos) * Contacto: 229 951 626 * 12h – 24h (encerra às Segundas) * Preço médio: 35 € * Nota: 81%

Ribeira negra

Há já algum tempo que andava tentado a fazer uma ronda pelos clássicos restaurantes da Ribeira. Para os portuenses, genericamente, aqueles são restaurantes turísticos, caros, com uma comida estandardizada e geralmente má, um atendimento mecânico, enfim, a evitar. Mas será que é mesmo assim? Ainda me lembro de alguns dos restaurantes da Ribeira serem motivo de orgulho. O que se passará quando os turistas cá não estão? Fui investigar.

A Mercearia caracteriza-se por uma decoração rústica, granito à vista e ilustrações da Cidade. A vista do Douro que o 1.º andar nos oferece é deslumbrante. E é pena não poder terminar aqui esta crítica. O resto foi para esquecer.

O couvert é pobre (manteiga, azeitonas, tostas e um pão escuro - € 3,50). De uma carta com muita (mas básica) oferta, opto por arriscar (maldita a hora!) umas tripas à moda do Porto (€ 13,50). A dose era abundante, mas de feijão e ainda por cima encruado. As tripas contavam-se pelos dedos de uma mão e os restantes ingredientes eram quase invisíveis. Buscando compensação emocional provo o Manjar do Príncipe (€ 4,25), um doce de ovos e amêndoa, mas que ainda me deixou mais enjoado. Tudo isto sem poder fumar.

No site do restaurante lê-se: “A caminhada para o sucesso não está em pretender resultados imediatos, mas sim na perseverança da nossa vontade em melhor servir”. Pois perseverem com mais afinco que os otários, perdão, turistas, não duram sempre.

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Mercearia * Rua Cais da Ribeira, 32-33 - Porto * Contacto: 222 004 389 * 12h – 16h | 19h – 23h30 (encerra 3.ª feira) * Preço médio: 30 € * Nota: 40%

02 fevereiro 2012

A capital da Cultura (gastronómica) é aqui

Guimarães é Capital Europeia da Cultura. E eu com isso? Tudo. Sendo um profundo (dizem até notável, assombroso e reputado, exageros…) defensor da cultura gastronómica portuguesa e nortenha (garanto que isto não é o pré-anúncio de pedido de subsídios, esteja o Senhor Secretário de Estado descansado) não poderia deixar passar em branco este notável acontecimento. Na realidade um excelente pretexto para ir ao São Gião assistir sentado ao único espectáculo cultural que me faz fazer quilómetros (ou isso ou um concerto do Paco Bandeira, de preferência com pistola): comer divinamente.

O restaurante é difícil de encontrar. Mais difícil quando o Moreirense (o restaurante fica pertíssimo do seu estádio) actua agora na Liga Orangina e Moreira de Cónegos voltou a ser um local remoto.

A sala é espaçosa e espantosa com uma lareira ao centro, que aquece e agasalha os visitantes entretanto deslumbrados pela lindíssima vista dos vinhedos do vale de Moreira. A recepção e o atendimento são tranquilos, familiares, oferecendo boas sugestões e grande disponibilidade.

O São Gião é conhecido por, apesar de ter um líder criativo, não dispensar as bases da mais elementar cozinha tradicional portuguesa. Será precisamente um dos segredos do sucesso do chefe Pedro Nunes. Outro segredo é que é uma casa onde se combate a monotonia variando frequentemente a ementa.

A carta de vinhos é extensa e a ementa é tão vasta e sugestiva que nos deixa com dificuldades de escolha, seja nas entradas, nos pratos principais ou nas sobremesas. Mas é aí que as sugestões dos solícitos funcionários se demonstram preciosas.

Das entradas selecciono o presunto supremamente acompanhado com raspas de foie gras (€ 13,50) e umas deliciosas setas grelhadas (€ 5,50). Dos pratos principais ponho à prova por esta ordem: o colarinho de pescada à São Gião (€ 16,50), sem dúvida o mais bem temperado e acompanhado que comi até hoje (ajuda imenso a excelente qualidade da pescada); umas voluptuosas bochechinhas de vitela de leite confitadas (€ 16,50); e o confit de ganso (€ 15), um pouquinho seco mas igualmente delicioso. Para sobremesa opto pelo surpreendente Orizaba (€ 4,50), um semi-frio de chocolate coberto com uma fina camada de chocolate branco.

Desconheço o que se irá passar em Guimarães ao longo de 2012. Mas garanto: a capital europeia da cultura gastronómica é aqui.

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São Gião * Avenida Comendador Joaquim de Almeida Freitas - Moreira de Cónegos (Guimarães) * Contacto: 222 013 560 * 12h – 15h | 19h – 23h (encerra 2.ª feira) * Preço médio: 40 € * Nota: 92%