29 setembro 2011

Melhor é (quase) impossível

Quem anda nesta vida de total desregramento alimentar move-se (com cada vez maior dificuldade, é certo) tendo por base uma máxima importante: o melhor está sempre por vir. Infelizmente, o pior também. Mas todos os ofícios têm os seus riscos, e este até nem é dos piores. Contribuinte, por exemplo, é uma actividade onde o pior está sempre garantido.

Diziam-me que, actualmente, o Pedro Lemos é uma das catedrais do epicurismo alimentar do Porto. Exageros de gente deslumbrada, pensei. Mas nada como experimentar. Precavendo-me, fiz-me acompanhar de convivas exigentíssimos, daqueles que estão sempre à espera de mais.

O restaurante mora numa bonita casa reconstruída em plena Foz velha. Dividido em dois pisos, com espaços e ambientes diferentes, somos recebidos com uma simpatia pouco habitual porque parecia genuína. A decoração é bastante sofisticada mas a elegância não estorva nadinha. Acomodam-nos no piso superior e começo a pressentir que, de facto, algo de especial estaria para acontecer.

Inovar a tradição pode parecer uma contradição de termos. Mas é isso mesmo que o menu do Pedro Lemos (que muda todas as estações) nos oferece. A descrição dos pratos é pura poesia e a dificuldade é seleccionar o que pedir, quando a saliva já atrapalhava a fala.

Depois de um apetitoso pão embebido num magnífico azeite de Vila Flor, recebemos um bem-vindo miminho do Chefe: atum flamejado com sementes de sésamo, tomate catalão e creme de funcho. Para 1.º acto seleccionou-se: foie gras de pato mudo (€ 14), que me apeteceu perguntar se se vendia ao quilo; e lavagante azul, vieiras e caviar de aquitânia, abacate, salicornia e ouriço do mar (€ 16). Uma homérica explosão de sabores. Para o 2.º acto, três grandes representações: veja dos Açores num arroz de sapateira e caranguejo de casca mole (€ 23); cabrito das terras altas, couscous, ervilha torta e miúdos num guisadinho; e vitela mirandesa e língua com batatinhas de queijo da serra (€ 23). Silêncio e introspecção caracterizaram a degustação de semelhantes preciosidades. O grande (enorme!) final incluiu uma sericaia com granizado de moscatel de Setúbal (€ 7,50) e café e cardamomo numa panna cotta, salada de citrinos e crocante de sésamo (€ 8).

Estupefacção é a palavra que melhor sintetiza o que senti depois desta sinfonia de prazeres.

Não nego que poderá haver melhor. Mas acredito, veementemente, que deve ser quase missão impossível.

Pedro Lemos * Rua Padre Luís Cabral, 974 – Porto * Contacto: 22.0115986 * 2.ª e 3ª 19h30-23h. 4.ª a Sábado 12h30-24h (encerra Domingo) * Preço médio: 45 € * Nota: 96%

Gabriela, alheira e vitela

As injustiças, ainda que inconscientes, devem ser corrigidas. Escrevi aqui que a melhor posta de vitela à mirandesa se comia em Mogadouro, no Restaurante A Lareira. Eu, pecador me confesso, e por influência de vozes que agora amaldiçoo, desprezei a inventora da posta à mirandesa: a Gabriela. Esta correcção é ainda mais justa quando, se é verdade que a posta do Lareira é bastante boa, a má educação do seu proprietário (comprovadíssima numa recente segunda visita), merecia, no mínimo, uma granada.

O restaurante, situado na pequena mas muito acolhedora vila de Sendim, tem quase 100 anos. Na parede vemos um solene retrato da fundadora. Embora sorrindo, impõe um respeito tal que nos convoca ao silêncio, de resto generalizado a todos os convivas.

Sou atendido com recato pelos descendentes da Gabriela. Beber, bebe-se o vinho da casa. Quanto à comida simplicidade e eficácia. De entrada, a obrigatória alheira de caça. Em seguida, a dita cuja posta (€ 13), tenra, leve e temperada no precioso molho, muito imitado mas que aqui ainda é o original, e onde umas simples batatas fritas se transformam num precioso pitéu. As compotas (ginja, cereja, figo) com queijo (€ 3,50) e os licores da casa fecham a refeição em beleza.

Imitações da posta à mirandesa haverão muitas e boas. Mas, acreditem, continua a valer a pena esta peregrinação à origem. Nem que seja para uma merecida reverência à queima de carne com tal arte.

Gabriela * Largo da Igreja, 27 – Sendim (Miranda do Douro) * Contacto: 273.739180 * 12h-15h00 19h-22h (não encerra) * Preço médio: 18 € * Nota: 75%

15 setembro 2011

A matéria-prima é que manda

Até há cerca de 10 anos era alérgico a marisco (desconfio que se tratava de solidariedade do meu organismo para com a minha carteira). Desde que me livrei de semelhante privação (cura de origem desconhecida para a medicina terrena) tenho habitado parcialmente um viveiro. Provei com frenesim tudo e em quase todo o lado e sou hoje o que se poderá chamar um perito. Nem sei como é que Assunção Cristas desperdiça semelhante sapiência e ainda não me convidou para seu assessor na área das pescas e afins. Logo eu que nunca usei gravata…

Em terra de marisqueiras históricas, afamadas nacional e internacionalmente, é difícil eleger a melhor. Mas eu já escolhi. Ou melhor, fui escolhido pelo elemento crucial: a matéria-prima.

Inaugurada em 1978 (renovada há dois anos), a Marisqueira de Matosinhos é detentora de viveiros de marisco próprios e de fornecimento diário de peixe que surpreende, acima de tudo, pela frescura dos sabores que nos faz chegar à mesa, ainda por cima com um serviço atencioso. Excelente no marisco ao natural (destaque para as ostras, a sapateira e o camarão médio) e no confeccionado (camarão tigre grelhado com batata palha, amêijoas à Bulhão Pato ou até uma simples omeleta de camarão).

A lista de vinhos não é extensa mas não importa; aqui a tradição ordena que se beba cerveja a copo. E vale a pena porque a pressão e a temperatura com que é servida está próxima da perfeição.

Para começar um dos meus pratos de eleição: amêijoas à Bulhão Pato. Simplesmente as melhores, repito, as melhores que comi em toda a minha vida. Não me revelam o segredo mas desconfio que tem tudo a ver com o facto de parte do molho ser a água das próprias amêijoas (segredo conhecido mas muito difícil de concretizar). A tentação de dobrar a dose das amêijoas e parar é grande mas resolvo avançar para outra preciosidade simples mas que aqui, sempre pela mesma razão – matéria-prima –, é absolutamente soberba: dois camarões tigres encorpados grelhados acompanhados por uma batata palha acabadinha de fritar.

Para sobremesa escolho algo pouco ortodoxo mas que garante o efeito “dois em um”: um Irish Coffee muito bem conseguido capaz de competir com o dos melhores pubs irlandeses e com a vantagem de que a seguir posso fumar.

Que me perdoem as restantes marisqueiras de Matosinhos, e eu sei que as há bastante boas, mas para mariscos esta é a minha última morada.

Marisqueira de Matosinhos * Rua Roberto Ivens, 717 – Matosinhos * Contacto: 22.9381763 * 12h às 15h00 19h30 – 0h00 (encerra às quartas-feiras) * Preço médio: 20 € * Nota: 75%

A importância de ser honesto

A degustação de pratos sofisticadíssimos pode proporcionar-nos experiências inolvidáveis. Mas o excesso de criatividade também cansa. Às vezes apetece-me apenas uma comidinha honesta, sem surpresas, em que posso confiar e que não me obriga a grandes reflexões. No fundo, a comida que eu faria em casa se alguma vez lá estivesse.

A entrada do Ernesto conserva a decoração de casa de pasto. E assusta. Mas logo se dá a ruptura e passamos para uma sala de pedra rústica com uma decoração singelamente moderninha. À dispensável TV concedo perdão: está sintonizada num canal de viagens.

Imediatamente me chegam umas entradas simples mas muito cumpridoras da sua missão: fatias de um excelso queijo e um salpicão (€7,50) que se desfaz na boca. Para prato principal, e cheirando-me a peixe frito, nem penso duas vezes: carapaus, pequeninos e estaladiços, com arroz de tomate (€5,70 meia dose). Satisfeito? Sim, mas não resisto e arremato com uma marmotinha frita (7,60 meia dose). Para desenjoar (como se fosse preciso!) um leite-creme queimado (€2,60) que só peca pelo excesso da dose.

Citar Sócrates sobre o tema da honestidade pode parecer um paradoxo. Tratando-se do filósofo, um bocadinho menos: "se o desonesto soubesse a vantagem de ser honesto, ele seria honesto ao menos por desonestidade." Não sei se é este o caso do Ernesto. Mas que satisfaz, disso não tenho dúvidas. E isso, afinal, é ou não é o mais importante?

Ernesto * Rua da Picaria, 85 – Porto * Contacto: 22.2002600 * 12h – 15h 19h – 23h (encerra Domingos e feriados) * Preço médio: 15 € * Nota: 75%

08 setembro 2011

Outro mundo é possível

Confesso que só como hambúrgueres em situações de emergência económica ou de catástrofes naturais. Numa noite estival atípica (cada vez mais frequente) de chuva e frio e sem ânimo para grandes aventuras, acabei por ceder à preguiça e visitar um restaurante próximo de casa. E só vos posso dizer: abençoado arrefecimento global e os caprichos atmosféricos do mês de Agosto que me levaram a descobrir o paraíso da carne picada.

Numa sala pequena e onde a decoração artística é sóbria e não perturba o apetite sou recebido por uma deslumbrante anfitriã e pela música de Chet Baker.

A carta de vinhos é curtinha mas há escolha suficiente para a ocasião. Das entradas experimento o carpaccio de novilho com alcaparras, parmesão e rúcula (€ 6,5) e os cannellonis de beringela com requeijão e ervas aromáticas (€ 3,5), ambas excelentes escolhas. Pela estranheza da coisa tentaram-me o hambúrguer de bacalhau ou o sortido oriental de três mini-burgueres. A prudência orientou-me para revelações menos arriscadas mas igualmente surpreendentes: hambúrguer de tamboril e camarão com risotto de marisco e legumes salteados (€ 13) e o brik de novilho recheado com queijo de cabra e cogumelos acompanhado por batatas assadas e esparregado de espinafres (€ 12). Termino em êxtase com um cheesecake de Baileys e bolacha de chocolate (€ 4).

A única dificuldade foi fechar a boca. Não porque ficasse com fome mas por simples espanto.

Bugo – Art Burguers * Rua Miguel Bombarda, 598 – Porto * Contacto: 22.6062179 * 12h - 15h 20h – 24h (encerra aos Domingos) * Preço médio: 22 € * Nota: 75%

01 setembro 2011

Sonho de uma noite de Verão

Estar no nordeste transmontano, sentado numa poltrona de frente para as serenas águas do Tua, ao lado de um piano e ouvindo Ella Fitzgerald parece um sonho. Mas garanto-vos que, ultrapassado o pesadelo do IP4 (a simples ideia de que o túnel do Marão se mantenha fechado e a finalização da A4 seja uma quimera faz-me pensar em encomendar vários homicídios) e chegados a Mirandela, esse sonho se torna realidade.

O Flor de Sal contraria todas as probabilidades do calimerismo português. Ao invés de se lamentar do “custo da interioridade”, o seu proprietário arriscou, no dito interior, isolado, desertificado e nas palavras de políticos locais, quase apocalíptico, abrir em 2004 um dos mais bonitos restaurantes do país. Ao invés de recorrer aos pratos típicos transmontanos, arriscou uma perfeita e inigualável simbiose entre tradição e modernidade prestigiando ao mesmo tempo produtos locais com central destaque para o azeite e seus imensos e criativos derivados.

A decoração sofisticada, utilizando materiais típicos de Trás-os-Montes, é o perfeito cartão de visita do arrojo que caracteriza esta casa. Um fantástico bar onde se pode fumar e uma esplanada debruçada sobre o rio com uma contemplativa vista de Mirandela são antecâmara obrigatória.

A abissal garrafeira, capaz de conservar imensos vinhos a diferentes temperaturas, merece uma especial atenção: aproximadamente 300 referências, das quais mais de 30 podem ser servidas a copo.

A recepção é bastante calorosa e de uma eficiência irrepreensível. O cardápio, para além de menus de degustação muito aconselháveis, apresenta uma alargada oferta de entradas quentes e frias, arrozes e carnes. Para entrada atiro-me a um genial Tantinho de foie gras com figos adoçados e noz, geleia de favaios e crocante de magret curado. Dos pratos principais não resisto aos Basculhos de vitela mamona e seu molho amanhado sobre grumos de cogumelos e vinho espumante seco. O prazer que o prato me deu foi ainda maior do que o respectivo nome. Embora me tentem várias sobremesas que incluem azeite como ingrediente, opto por um Estaladiço de barriga de freira com gelado de canela. Ode às freiras e aos seus bandulhos.

Dizia Florbela Espanca que não devemos acreditar muito nos sonhos porque de todos se desperta. O Flor de Sal é a excepção que confirma a regra.

Flor de Sal * Parque Dr. José Gama – Mirandela * Contacto: 278.203063 * 12h30 – 15h30 19h30 – 23h (encerra Domingo ao Jantar e 2.º feira) * Preço médio: 35 € * Nota: 85%

Combinado!

O facto de haver cada vez mais restaurantes que simultaneamente são galerias de arte faz deste mundo um lugar fascinante. Melhor ainda só restaurantes que são também escolas de circo, abrigos de poetas não publicados, discotecas ou associações de filatelia.

Eu, bota-de-elástico me confesso, continuo a preferir aqueles onde a única actividade é servir refeições e satisfazer a fome dos convivas.

Integrando-se nesta nova vaga de combinados, o Trinc’Arte é, apesar disso, uma visita recomendável. Numa localização de excelência (pleno centro histórico) uma estética sóbria mas atraente alia-se a comida menos convencional e a preços sensatos.

Uma carinhosa recepção abre-nos o repasto com umas deliciosas fatias de pão e um paté de queijo e tâmaras. Para entradas selecciono cogumelos recheados com alheira (o sabor da alheira perdeu-se algures) e uns crocantes rolinhos de queijo de cabra com doce de frutos do bosque. A escolha de vinhos não é vasta mas, em compensação, é possível beber vinho a copo.

Para prato principal optei por um competente bife com cogumelos, esparregado, arroz tufado e batata frita. O bife, para além de muito tenro, repousava num molho de múltiplos e agradabilíssimos sabores. Para sobremesa uma generosa fatia de tarte de lima que, não sendo exactamente de Key West (Florida), é bastante recomendável.

Se a sua arte for trincar, avance. Se procura um banho de cultura, o rio Douro é mesmo em frente.

Trinc’Arte * Rua Nova da Alfândega, 12 – Porto * Contacto: 22.2025655 * 10:00 - 24:00 (encerra à Terça) * Preço médio: 18 € * Nota: 70%