30 junho 2011

Contributos para o índice da felicidade interna

Começo por uma declaração de interesses: esta crónica é um apelo desesperado à adopção. Estou totalmente disponível para abdicar dos poucos laços de sangue que me restam e entregar-me nos braços de Ana Maria e Desidério Rodrigues. Prometo ser um filho leal, obediente, meigo, carinhoso, trabalhador, enfim, o filho perfeito. Condições? Cama, mesa e roupa lavada. Ou apenas mesa. Onde? No Solar Bragançano, claro.

Falo-vos de uma casa encantada, do castelo imaginário da nossa infância onde as promessas de requinte, sofisticação, fartura e felicidade eterna se cumprem como nos sonhos: para sempre. E era aqui, nesta casa, neste abrigo, que eu queria viver. E de certa forma vivo. Porque só aqui me sinto verdadeiramente feliz. Quando me passeio por estas salas ao som de Mozart ou Haydn, quando degusto as primeiras entradas, quando provo os divinos sucos do Douro, quando fumo num pequeno pátio repleto de flores e aromas celestiais, percebo que tudo o resto que faço na vida faço-o em função de poder experimentar momentos como estes. Viver sem ter desfrutado desta joie de vivre é pura ilusão.

Perdida que está totalmente a objectividade crítica, prossigamos sem medos. Em relação à comida só posso dizer que tudo é excelente. Mas a caça é a aposta certa. O pote mágico de Ana Maria transforma lebres, faisões e perdizes em raridades que fazem as papilas gustativas enviar-nos mensagens ao cérebro que, como compreenderão, não posso aqui reproduzir.

Depois de preciosas iguarias de fumeiro regional e torradas embevecidas em azeite dos deuses, degustemos uma sopa de castanhas. Para prato principal as minhas preferências vão para: javali estufado, perdiz com uvas, arroz de lebre e o soberbo faisão com castanhas. Peixe também é possível e um congro grelhado a melhor opção. Para sobremesa sugiro a abóbora dourada ou a sopa de cerejas.

Querem revisão constitucional? Pois bem, na minha opinião a Constituição da República Portuguesa deveria ter apenas um artigo: todos os cidadãos, maiores de idade, devem ter o direito de, pelo menos dez vezes na vida, almoçar ou jantar no Solar Bragançano. Os restantes artigos estão implícitos. Liberdade, igualdade e felicidade. Os fundamentais.

P.s. A nota de 99% e não 100% é uma pequena reserva de opinião. Quando a Ana Maria e o Desidério Rodrigues me adoptarem, liberto o 1% restante.

Solar Bragançano * Praça da Sé, n.º 34 – Bragança * Contacto: 273.323875 * Das 12h às 15h e das 20h às 23h (encerra à 2.ª feira em época baixa) * Preço médio: 25 € * Nota: 99%

Do Aleixo nunca me queixo

A primeira vez que entrei nesta casa foi há mais de 30 anos. Vim pela mão do meu saudoso avô que nesse dia me disse: “hoje vamos almoçar fora”. Desconhecia o verdadeiro significado daquelas palavras. Rápida e surpreendentemente descobri que tinha outra casa e outra família mas com a vantagem de que podia escolher o prato.

A Casa Aleixo é um dos poucos restaurantes “históricos” do Porto que nos resta. Numa sala com paredes de pedra, repletas de memórias (as duas páginas de Frank Bruni no The New York Times impressionam), o acolhimento não é exuberante mas é eficiente. No menu (também disponível em japonês) esperam-nos as lendas que continuam a cativar pela manutenção da sua qualidade ao fim de mais de 50 anos de existência. Da “farmácia” (garrafeira) nada de genéricos: qualidade e quantidade. Do “laboratório” (cozinha) podemos esperar as melhores experiências e a plena satisfação da “sala de operações” (sala de jantar). Ex-libris obrigatórios são os filetes de pescada e de polvo. Mas um cozido à portuguesa, uma chispalhada com feijão vermelho e grelos ou o cabrito assado no forno não fazem ninguém perder a viagem. Grand finale, uma preciosidade: as rabanadas encharcadas em mel e vinho do Porto.

Nestes tristes tempos em que a urgência de competitividade, criatividade e inovação nos oprimem conforta regressar a uma casa onde a tradição ainda é o que era.

Casa Aleixo * Rua da Estação, 216 – Porto * Contacto: 22.5370462 * Das 12h00 às 14h30 e das 19h30 à 22h00 (encerra Domingos e feriados) * Preço médio: 20 € * Nota: 70%

23 junho 2011

Devagar que nem um abade

Os acontecimentos mundiais e nacionais mais recentes (sim, estou a falar da crise, ou lá o que é) convidam à reflexão, à contemplação, e, no limite, ao recolhimento. Impossibilitado de entrar para um convento (ainda é cedo) procurei beneficiar pelo menos da melhor parte de tal desígnio: comida conventual.

À chegada o Senhor Abade, perdão, o chefe João sugere-me, persuasivamente, que leia a introdução do menu avisando-me que não estou num restaurante normal. Lido o memorando de entendimento, percebo quais as principais e mais urgentes medidas a tomar. O principal driver (como se diz agora) é que tudo se irá passar devagar. E que em termos gastronómicos iremos entrar numa máquina do tempo. Bons presságios.

A cozinha do Senhor Abade oferece-nos um menu baseado na reconstituição de pratos antigos (algumas receitas têm mais de cem anos) de origem nortenha e conventual e serve-os de forma a desacelerar a postura e o palato. Estamos portanto perante um restaurante em que a slow food comanda. Há apenas um senão: para comermos as mais sugestivas preciosidades é preciso encomendar com antecedência e só poderão ser confeccionadas para um mínimo de 4 pessoas. Orgias, portanto. Ou seja, a um single fica vedado o acesso às raridades.

A carta de vinhos é bastante variada e descobrimos uma fantástica possibilidade: pedir vinho a copo, coisa muito útil para quando se está sozinho ou para quando se quer variar ou melhor adaptar o copo ao prato.

Para entradas as possibilidades são quase todas apelativas. Opto por experimentar a morcela (nada de especial), uns pezinhos de porco ao ovo (como nunca tinha comido) e lombinhos de carapau numa cama de azeite (como pode uma coisa tão simples ser tão deliciosa?).

Quanto aos pratos principais, deixo-me levar inteiramente pela mão do omnipresente chefe e experimento um guizo de polvo com bolo de milho e brócolos brancos (fico sem entender porque é que tanta gente trata tão mal o polvo) secundado por uma suculenta bochecha de vaca com milhos que me desperta sensações até então desconhecidas.

As sobremesas são pesadas, mas incontornáveis. Sopa dourada, arroz doce branco com molho de amora e o charuto de ovos (a única coisa que, lamentavelmente, se pode fumar neste espaço) foram as opções.

À saída reparo que o Senhor Abade fica mesmo em frente à Viela dos Abraços. E é isso que nos apetece: abraçar o mundo. Devagarinho.

Senhor Abade * Rua Direita, 98 – Leça da Palmeira (Matosinhos) * Contacto: 22.0114266 * Encerra ao Domingo, feriados e almoço de 2.ª feira * Preço médio: € 25 * Nota: 85%

Faça você mesmo

Não sei se vos acontece o mesmo mas há dias em que me apetece cozinhar fora. Não me refiro a barbecues ou sardinhadas no quintal da vizinha. Falo de um bom “cozinhe você mesmo”, vulgo fondue, daqueles prolongados, com tempo para conversar, pausas para fumar e cheiro a carne esquecida no fundo da panela.

O Cheddar é um restaurante pequeno mas que permite a necessária privacidade. Além disso é ainda Cheddart. À semelhança de outras casas no Grande Porto, assumiu recentemente a função de galeria de arte exibindo fotografias de autor. Comer numa galeria de arte é um conceito interessante e que pode salvar um jantar. Ou vice-versa.

O couvert é fraquinho (tostas vulgaríssimas e um creme de queijo enjoativo), bem como a garrafeira. Nas entradas, uma espécie de iniciação aos fondues. Opto, e bem, pelo de enchidos. Em relação aos fondues propriamente ditos, vários componentes possíveis: carnes (aves e caça), peixe, marisco e, Deus me livre, vegetariano. Todos acompanhados de molhos variados, batata frita e ou arroz. Para os preguiçosos a alternativa seria um bife (molho à escolha). De sobremesa, agarrem-se bem, um fondue, claro, desta feita de chocolate.

Quando saio reparo que sou seguido de muito perto por uma matilha de cães exibindo um apetite voraz. Um fondue com serviço de lavandaria incluído seria seguramente negócio de ainda maior sucesso.

Cheddar tea & fondue * Rua Heróis de França, 611 – Matosinhos * Contacto: 22.4003044 * 12h30-14h30 20h-24h (encerra domingo e 2.ª feira ao almoço) * Preço médio: 20 € * Nota: 65%

16 junho 2011

Regresso ao futuro

Temos ouvido com frequência afirmar que o regresso à terra é inevitável. Não posso estar mais de acordo. Há muito tempo que eu digo que vivíamos na Lua. Decidi assim seguir os conselhos de um certo líder partidário e voltar à lavoura.

Na Casa Agrícola a recepção e atendimento não são exactamente um primor. Digamos que se enquadram no estilo “querem ver que vou ter que atender este pelintra?”. Compensam a decoração composta por objectos que nos criam uma ilusão de estarmos num museu ou de regresso à casa encantada dos bisavôs (que não conheci mas que gosto de imaginar que viviam assim).

O encanto continua quando descubro que existe uma magnífica sala de fumadores. Sendo o couvert miserável e totalmente dispensável (pão sensaborão, manteiga plastificada e azeitonas raquíticas), avanço para o menu e começo a perceber que vai valer a pena. A garrafeira é generosa. Das entradas, bastante convidativas, selecciono três de que não me arrependo: morcela com maçã e cebola, tarte de queijo chévre com doce de tomate e cogumelos recheados com camembert. Quanto aos pratos não resisti ao magret de pato com redução agridoce acompanhado de batata palha (entrou para o meu top ten) e a um bacalhau confitado com migas de coentros que me deixou de queixo caídos. Para terminar, um pavé de chocolate ou, em alternativa, um folhado com frutos silvestres.

Na Casa Agrícola o futuro faz-se no passado. E este é o melhor presente que podemos ambicionar.

Casa Agrícola * Rua do Bom Sucesso, 241 – Porto * Contacto: 22.6053350 * Das 12h às 15h e das 20h às 23h (encerrado aos Domingos e Feriados) * Preço médio: 25 € * Nota: 70%

09 junho 2011

Subir ao Eliseu

Onde comer a melhor posta mirandesa é tema controverso e fracturante. Ao longo dos últimos seis anos procedi a aturadas investigações (um doutoramento, portanto) e comprovei cientificamente: é a lareira de Eliseu Amaro quem melhor manda postas.

A Lareira é um espaço conservador e conservado (sentem-se os seus 28 anos). Uma esplanada, seguida de um café precede uma ampla sala de jantar. Quando entramos, à esquerda, deparamo-nos com a dita. Enorme. Ao comando, o chefe Eliseu de jaleca branca e barrete alto controla a grelha de brasas vivas.

Outra razão para visitar A Lareira é coleccionar fungos, de preferência no estômago. De entrada, pedindo com jeitinho, Eliseu serve-nos cogumelos silvestres salteados em azeite e ervas aromáticas. Alucinações só com o tamanho das doses.

A posta chega-nos grelhada na perfeição e o segredo é público: a grelha é colocada com uma inclinação quase científica, de modo a que o calor asse apenas a camada exterior da posta que é servida com um molho avinagrado (segredo, bem guardado) à parte. O molho demonstra-se ainda mais precioso quando derramado sobre as batatas assadas no forno, tipo rösti. Quando se espeta a faca, o interior da posta está intacto. Bem passado, aqui, só o tempo que dedicamos à posta.

Para sobremesa, mais uma dose de cogumelos silvestres não estaria mal. Em alternativa uma agradável charlotte de ananás ou uma pêra cozida em vinho tinto.

Em tempos de grandes indignações a minha é que esta lareira ainda não seja património nacional. Acamparei.

A Lareira * Av.ª N.ª Senhora do Caminho, 58 – Mogadouro * Contacto: 279342363 * Das 12h às 15h e das 19h às 22h (Encerra à 2.ª feira) * Preço médio: 18 € * Nota 75%

Pertinho do céu

Estar no nordeste transmontano, só por si, é para mim já estar às portas do céu. Eu sei que é estranho mas tenho esta mania de achar que territórios vazios de gente e perto de Espanha (ou, melhor, longe dos portugueses, sobretudo dos de Lisboa e do Porto), são o paraíso.

Para o comum dos mortais as justificações são muitas para evitar estes territórios: as estradas são más (o IP4 deveria ser transformado em parque de diversões, com atracções tipo poço da morte), não há grandes ofertas e oportunidades (nem novas nem velhas), que para tais distâncias mais vale ir a Espanha, os transmontanos são difíceis de conquistar (até porque a maior parte deles está em Lisboa). Enfim, com excepção do poço da morte, desculpas. Desculpas de quem se rende facilmente ao que está mais perto, ao que é mais rápido ou às modas e preconceitos.

O restaurante São Pedro é uma casa simples mas não simplória. A sala é espaçosa e a decoração recorda-nos onde estamos. O atendimento é tão gentil que me volta a fazer acreditar nas benesses do matrimónio. Aqui não nos servem pratos com espumas, nem liquidificações e muito menos reduções (sobretudo nas doses). Aqui temos comida de acordo com os mais simples elementos e confecção. Ainda por cima quase toda confeccionada com base em produção caseira. O que escolher? Nós sabemos ao que viemos: queremos o silêncio dos inocentes, de preferência bem tostados. Falo das deliciosas costeletinhas de cordeiro grelhadas. Dizem-me que não é comida portuguesa, que é um prato típico espanhol... Mas, sinceramente, já comi muito cordeiro espanhol e continuo a achar que quase todos foram mortos em vão. Acompanhamentos? Até os dispensava, mas não consigo evitar uma salada de tomate e alface a saber a tomate e alface e cometer um dos piores erros de nutrição (misturar hidratos de carbono – batata e arroz). Também é possível e recomendável (não necessariamente cumulativamente) comer a tradicional posta à mirandesa, e, estranhamente, tendo em conta o território em que estamos, um arroz de marisco que compete, ganhando, com muitos que comi em zonas afamadas e onde o mesmo é especialidade. Vinho? Beba-se o da região (neste caso da Cooperativa de Sendim) que é mais do que boa companhia. Sobremesas? Para quê? O que é preciso, isso sim, é uma aguardente local.

E tenho dito. Este São Pedro faz mesmo milagres. Que mais podemos pedir a um santo?

São Pedro * Rua Mouzinho de Albuquerque, 20 (centro histórico) – Miranda do Douro * Contacto: 273.431321 * 12h-14h / 17h-21h30 – Encerra à 2.ª feira à noite * Preço médio: 18 € * Nota 75%

02 junho 2011

Jantar em casa

Há restaurantes que frequentamos pela comida, outros onde vamos pela localização ou pelo ambiente e decoração. E há restaurantes onde vamos para nos sentirmos em casa. Pelo menos numa casa decente. O António é isto.

Tendo habitado vários anos uma vivenda simpática mas acanhada, mudou-se recentemente melhorando a sua reconhecida capacidade de acolhimento temperada por um serviço equilibrado entre o profissionalismo e a informalidade.

O António não é só o nome do restaurante. É também o nome do seu proprietário que importa conhecer e chamar para receber importantes orientações discretas e honestas, sobretudo sobre o que escolher de uma garrafeira bastante generosa.

Entradas não se dispensam. Destaque para as pataniscas de bacalhau (secas e estaladiças) e, para quem não tenha medo do PEC 5, umas amêijoas à Bolhão Pato.

Depois, entre muitas iguarias, elejo o cabrito assado no forno, com arroz do mesmo, acompanhado de batatas assadas e de um excelente esparregado. Juro pelas alminhas que é mesmo o melhor que comi em toda a minha vida. Alternativa? Chamem o António.

Para sobremesa, se gostarem de chocolate e tiverem sorte (não há todos os dias), recomendo o bolo escangalhado.

E depois? Depois podemos ficar ali, exactamente como se estivéssemos em casa. Com a enorme vantagem de que alguém virá mudar os cinzeiros.

O António * Rua Óscar da Silva, 2681 – Leça da Palmeira – Matosinhos * Contacto: 22.9960741 * Encerra ao Domingo e 2.ª feira ao almoço * Preço médio: € 25 * Nota: 80%